Daliana passou pela cirurgia em 2005. Desde então, enfrenta graves problemas de saúde
Pelo menos 450 pacientes no Brasil já passaram por uma controversa cirurgia criada pelo médico goiano Aureo Ludovico de Paula com o objetivo de se livrar do diabetes tipo 2. Talvez o mais conhecido seja o apresentador de TV Fausto Silva, operado em julho. Faustão diz que está bem mas não fala sobre seu caso. A técnica é chamada de interposição do íleo. O íleo é a porção final do intestino delgado onde são secretados hormônios que estimulam a ação da insulina no pâncreas. Paula acredita que uma mudança nessa região do intestino possa controlar o diabetes e manter os pacientes livres dos remédios.
Desde 2007, a técnica tem sido apresentada em reportagens como uma esperança de cura. Nesta semana, o Conselho Nacional de Saúde se manifestou oficialmente sobre o assunto. Segundo o órgão que faz parte do Ministério da Saúde, a operação é ilegal.
Na quarta-feira (4), o Conselho Nacional de Saúde entrou com uma representação no Ministério Público Federal, emGoiânia, pedindo providências à procuradora Léa Batista de Oliveira. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, espera que a procuradora entre com uma ação judicial impedindo a realização desse procedimento no Brasil.
A cirurgia não é regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina como são todas as técnicas cirúrgicas consagradas. Poderia ser considerada experimental. Para isso o médico precisaria ter registrado um protocolo de pesquisa na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Esse registro nunca existiu.
“Se a técnica não está formalizada nem é experimental, ela é ilegal”, afirma Batista Júnior. Segundo ele, o Conselho Nacional de Saúde está preocupado com as pessoas que fizeram a cirurgia e acham que estão bem. “A cirurgia atua sobre uma porção do intestino que é fundamental para a absorção de nutrientes. Essas pessoas precisam saber que correm o risco de desenvolver complicações imprevisíveis que podem até levar à morte.” Batista Júnior afirma que o Conselho Nacional de Saúde pretende mapear todos os pacientes que passaram pela cirurgia e acompanhar a evolução deles.
Feita por laparoscopia, a cirurgia consiste em aproximar do estômago uma parte do íleo (porção final do intestino delgado). O objetivo é intensificar a produção de hormônios existentes no íleo que estimulam a ação de insulina no pâncreas. Durante a operação, o médico faz também uma redução de cerca de 40% do estômago. O paciente perde peso e, com isso, diminui a resistência do organismo à insulina. O diabetes melhora.
Paula tem apresentado resultados positivos em congressos médicos e em revistas científicas. Em um artigo publicado em agosto de 2007 no periódico Surgical Endoscopy, ele afirma que, em um grupo de 39 pacientes submetidos à técnica, 90% ficaram completamente livres do diabetes. A técnica tem sido divulgada em reportagens. Mas a falta de estudos clínicos registrados e acompanhados por outros especialistas impede a avaliação criteriosa de possíveis riscos e benefícios.
“Não existe substrato na literatura científica para que essa técnica seja oferecida à população. Ela é feita por um único cirurgião que apresenta resultados sem auditoria”, diz Thomaz Szegö, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica. Segundo Szegö, não é possível dizer nesse momento se a técnica é boa ou ruim.
“Ninguém está dizendo que a técnica é ruim. Estamos dizendo que é preciso comprovar se ela é boa ou ruim antes de oferecê-la aos pacientes”, diz. “Se for comprovado que ela é segura e eficaz, vamos incorporá-la ao arsenal médico”.
A principal motivação da providência tomada pelo Conselho Nacional de Saúde foi a denúncia feita pela advogada Daliana Kristel Gonçalves Camargo, de 31 anos, moradora de Goiânia. Em 2005, Daliana decidiu fazer uma cirurgia de redução de estômago. Ela mede 1m58 e, na ocasião, estava com 95 quilos. Segundo Daliana, o médico Aureo Ludovico de Paula disse que usaria a técnica convencional. Daliana assinou um termo de ciência, segundo o qual seria submetida a uma gastroplastia laparoscópica para tratamento de obesidade mórbida. Gastroplastia é um nome genérico que indica redução de estômago.
A informação que aparece no relatório assinado pelo médico no final da cirurgia é outra: ele afirma ter feito uma “gastroplastia vertical associada a interposição ileal”. A família de Daliana diz que não foi informada de que ela tinha sido submetida a uma cirurgia não-regulamentada. “O médico não nos explicou nada sobre isso. Achamos que minha filha faria uma redução de estômago convencional, a mesma que tanta gente já fez”, diz a mãe de Daliana, a funcionária pública Vera Lúcia Gonçalves de Camargo. “Vimos o termo interposição ileal no relatório dele mas não estranhamos nada. Somos leigos.” A família diz ter pago R$ 28 mil pela cirurgia.
A família não entende também por que Daliana foi submetida à interposição do íleo se ela nunca foi diabética. Teoricamente, a interposição do íleo poderia contribuir para a liberação de hormônios que aumentam a sensação de saciedade. Essa é uma hipótese levantada pelos cientistas. Mas não há comprovação de que seja seguro recorrer a esse expediente para reduzir a vontade de comer. Para obter exclusivamente esse efeito, existem as cirurgias clássicas de redução de estômago que já foram testadas, reproduzidas por muitos grupos ao redor do mundo e regulamentadas.
Daliana diz que sua vida nunca mais voltou ao normal depois da cirurgia. “Mesmo comendo devagarzinho, eu só vomitava. Eu procurava o médico e ele dizia que o problema era meu, que eu não sabia comer direito.” Nos últimos anos, ela foi submetida a vários procedimentos para tentar fechar uma fístula em seu estômago. Ficou internada por longos períodos, inclusive na UTI.
Desde o início do ano, Daliana não come nada. Não pode sequer beber água. É alimentada por uma sonda que leva uma solução proteica diretamente ao seu intestino. A família entrou na justiça de Goiânia com uma ação contra o médico. Pede o pagamento das despesas médicas e uma indenização de R$ 10 milhões. “Esse não é um caso de erro médico. É um caso grave de experiência médica sem consentimento”, diz o advogado da família Marcelo Di Rezende Bernardes.
A procuradora Léa Batista de Oliveira, do Ministério Público Federal, em Goiânia, investiga o caso desde julho. Recebeu nesta semana a representação do Conselho Nacional de Saúde. Pretende entrar com uma ação penal de lesão corporal e exercício ilegal da medicina contra Aureo Ludovico de Paula. Antes disso, vai solicitar que Daliana seja submetida a uma perícia médica e vai ouvir o médico. “Com base nas investigações que fizemos até agora tudo indica que esse é um caso de grave violação dos direitos humanos”, diz Léa.
“Estamos diante de experiências realizadas em desconformidade com todas as normas vigentes. O médico não informa devidamente os pacientes sobre os riscos da cirurgia, não tem protocolo de pesquisa, faz publicidade de uma técnica não-regulamentada e cobra por ela”, diz Léa. O caso de Daliana também está sendo investigado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Na quarta-feira, ÉPOCA esteve no consultório do médico Aureo Ludovico de Paula, em Goiânia. Ele se recusou a dar entrevista. Disse que não fala sobre sua técnica nem sobre o caso Daliana. Em sua defesa no processo que corre no Tribunal de Justiça de Goiás, o médico alega que “a cirurgia não é experimental e sim uma variante técnica de uma cirurgia consagrada há mais de 20 anos”.
Afirma também que “a paciente não foi objeto de nenhuma pesquisa e sim de terapêutica para obesidade e que a complicação ocorrida aparece na mesma frequência em outras operações bariátricas”. Alega ainda que “a fístula é uma resposta orgânica espontânea da paciente. É intercorrência imprevisível, uma complicação pós-operatória sem nenhum nexo com o procedimento realizado adequadamente”.
ÉPOCA esteve no quarto de Daliana em sua casa em Goiânia. Presa a uma sonda e a um dreno, Daliana costuma passar os dias agitada. Tem se tratado com o antidepressivo Daforin. Em um raro momento de tranquilidade, concordou em dar a seguinte entrevista:
Daliana antes da cirurgia
Daliana Kristel Gonçalves Camargo - Queria ficar bonitona. Tinha tentado de tudo: spa, dietas etc. Fazia exercício, fazia de tudo e não emagrecia. Sempre quis ser magrinha. Queria ser maravilhosa no verão. Mas fui engordando, engordando. Primeiro o Dr. Áureo colocou um balão no meu estômago. Fiquei seis meses com ele mas não resolveu. Logo comecei a engordar de novo. Ele me disse que se eu tivesse 100 kg poderia fazer a cirurgia. Comecei a comer muito para poder fazer a operação. Era mais fácil engordar do que emagrecer. Passei de 77 para 86 kg. O médico disse que ainda não dava. Aí eu me esforcei. Comia muito doce e fritura. Tudo. Cheguei a 95 kg. Agora você imagina o que é não poder comer nada agora. Eu gostava muito de comer.
Daliana - Para me educar. Depois da cirurgia eu não iria poder comer tanto, não iria engordar. Iria ficar bonita, iria vestir a roupa que quisesse. A psicóloga tinha me dito que depois da cirurgia minha vida seria diferente. Iria viver uma vida de operada.
Daliana - É verdade. Eu vomitava, passava muito mal. Comia só papinha e ainda assim só vomitava. Mesmo comendo devagarzinho eu só vomitava. Eu procurava o médico e ele dizia que o problema era meu, que eu não sabia comer direito. Eu achava que ele estava certo e não discutia com ele. Ele dizia que a culpa era minha e eu acreditava.
Daliana - Não. Nunca falou. Quando os problemas começaram a aparecer, ele disse que eu era azarada. Ele disse que tudo o que fazia dava certo, mas em mim as coisas que ele fazia não davam certo. Por muito tempo eu achei que não ia achar outro médico que fosse dar conta do meu caso. Por mais que ele me maltratasse eu tinha que aceitá-lo porque eu não tinha para onde ir.
Daliana - Tenho raiva porque ele não me disse que iria fazer uma cirurgia não regulamentada. Tenho raiva porque ele disse uma coisa e fez outra. Hoje não posso comer nada. Nem beber água.
Daliana - Perdi contato com minhas amigas. Estava fazendo pós-graduação, tive de parar. Não dou conta de estudar desse jeito. Perdi minha avó. Minha avó morreu, não pude ir ao velório dela. Eu estava internada em São Paulo. Quando cheguei em casa...(choro). Não acreditei que nunca mais iria ver minha avó. É muito triste.
Daliana - Todo domingo a gente saía, ia ao cinema, em festinha, era muito bom. Eu perdi isso. Não posso sair porque se vejo comida fico louca para comer e não posso. Estou tomando Daforin para controlar a ansiedade. Consigo andar mas preciso carregar o suporte da sonda e tomar cuidado com o dreno. Estou com sonda desde janeiro deste ano. Estou presa a ela porque tenho de tomar a dieta proteica. Tomo seis por dia.
Daliana - Só vontade de comer.
Daliana - Vejo televisão, fico na internet (uso notebook), tento estudar. O que eu posso fazer, eu faço. Mas tenho que ter muito cuidado com o dreno colocado na saída do estômago. Não posso correr nem andar muito rápido. Andar devagar e com muito cuidado eu posso. Até porque o dreno não tem ponto. Se sair tenho de pegar um avião, ir correndo pra São Paulo, torcer pra não dar nenhuma infecção. Se der infecção, tenho de tomar antibiótico e nem sei qual. Tem de fazer punção, drenar, ver qual bactéria que eu tenho e qual antibiótico tenho que tomar. É uma novela. Tem dia que choro a noite toda.
Daliana - Sei. Estou com 56 kg. A dieta é muito boa, não me deixa emagrecer. Preciso estar bem para a próxima cirurgia. O médico de São Paulo vai tentar fechar a fístula que eu tenho no estômago. Se não funcionar, ele vai ter de extrair o meu estômago. Vou rezar muito para dar certo.
Asssita ao vídeo que a família de Daliana colocou na internet sobre o caso:
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